Vivemos um tempo de pandemia; ou seja, uma enfermidade epidêmica se disseminou rapidamente atingindo diversas regiões do mundo. Penso que é bem possível que alguém que você conheça já tenha sido contaminado, ou infelizmente, como em alguns casos que tenho acompanhado com tristeza, veio a falecer.
Pelas redes sociais, recebo diariamente mensagens de alguém que foi contaminado, pedidos de orações e também as notas de falecimento anunciando um luto que na maioria dos casos se iniciará sem velório, sem cerimônia, sem despedida e talvez em uma vala comum. São pessoas de todas as idades, não são exclusivamente os “idosos” como querem apregoar alguns, como se fosse essa uma perda aceitável, o que certamente não é, pois todas as vidas importam. Dados recentes também indicam que quanto mais vulnerável socialmente a população maior a mortalidade. Muitas das vítimas são profissionais de saúde que compõem a linha de frente do serviço de saúde, tanto público quanto privado. Estes sim os verdadeiros heróis nesse momento difícil pelo qual passamos.
Essa é a hora de chorar com os que choram, como nos convida o apóstolo Paulo. Uso o termo convidar, pois essa identificação só é possível por meio de um afeto fundamental que é o amor e a empatia necessária para esse afeto circular.
As cenas de valas comuns abertas em cemitérios, a lotação das UTI’s onde os pacientes em estado grave são cuidados, a falta de respiradores e de equipamentos de segurança individual para os profissionais de saúde tornam a situação ainda mais dramática.
O Brasil por ter uma dimensão continental, tem diferentes cenários, alguns estados têm situações mais graves como São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco e Amazônia, outros menos. Isso exige uma análise de conjuntura caso a caso e que deve ser empreendida pelas autoridades locais levando em conta a vida humana e não o capital.
Enquanto escrevo esse texto (27/04/20 às 12h17), a Johns Hopkins University & Medicine, divulga dados mundiais sobre a COVID-19, coronavírus ou SARS-CoV-2: 2.990.559 pessoas já foram contaminadas (total de casos confirmados) resultando em 207.518 mortes em 184 países. No Brasil são 63.100 casos confirmados resultando em 4.286 mortes. (Fonte: https://coronavirus.jhu.edu/map.html)
Quando você estiver lendo esse texto, infelizmente, os números serão outros. Mas não devemos perder a esperança e muito menos entrar em pânico.
Existe um esforço mundial por parte da comunidade científica em descobrir remédios e vacinas, estudar a evolução da doença, projetar seu avanço e o mais importante, como impedir ao máximo a morte de pessoas. Equipes de profissionais de saúde trabalham e se expõem diariamente no cuidado dos que foram contaminados. Um grande número de profissionais foi afastado por causa do contágio e alguns infelizmente morreram no exercício da profissão.
Por outro lado, é espantoso o número de pessoas em todas as esferas da sociedade que prefere negar o fato, negar a ciência e dar crédito a pareceres duvidosos, que não têm respaldo da comunidade científica e ainda tentam desacreditá-la. São os negacionistas, não há argumentos que os façam mudar de ideia. Negam a realidade das vítimas, relativizam o número de mortos, questionam os laudos e em última análise o argumento deles é o de que outras doenças também matam e que alguns irão mesmo morrer pelo coronavírus, é isso!
Em um texto de 1925 sobre a “Negação”, Freud fará um comentário interessante: “...afirmar ou negar o conteúdo de pensamentos é tarefa da função do julgamento intelectual...”1 Nesse caso, quando negamos uma realidade como se ela não existisse, o fazemos de forma consciente, porém por razões inconscientes, ou seja, talvez estejamos diante de algo que desconhecemos sobre nós mesmos.
A negação tem um significado interessante na língua alemã, particularmente no uso que Sigmund Freud, “pai da psicanálise”, faz em seus estudos sobre o humano. A palavra “verleugnen” designa a recusa da percepção de um fato que se impõe no mundo exterior”2. Ou seja, existe um vírus, ele é altamente contagioso, pode levar à morte, o distanciamento social é necessário para conter o contágio que levará inevitavelmente a um colapso do sistema de saúde, pessoas morrem diariamente de forma exponencial, mas existem aqueles que negam, que recusam a realidade.
Quando negam ou recusam essa realidade, em primeiro lugar quebram um protocolo que visa preservar as vidas, ou seja ao não obedecer por exemplo o distanciamento social, colocam em risco não só a própria vida, mas a de seus familiares, amigos e pessoas com as quais eventualmente vierem a ter contato. Outro aspecto, é a falta de respeito para com aqueles que morreram pela doença e seus entes queridos, pois estão minimizando a doença. Falta de respeito para com os profissionais de saúde e por fim, com relação àqueles que estão sendo atingidos diretamente em seu sustento em função da impossibilidade de trabalhar. São indiferentes à dor do outro, Freud vai inicialmente notar uma certa semelhança nessa atitude com a de certos comportamentos psicóticos e mais adiante em sua obra com a perversão.
Outro termo também usado para a negação é “verneinung”, que é a negação de algo que está no interior, não está fora no mundo, mas dentro. A pergunta é: O que estas pessoas têm em seu interior que as fazem não apenas negar o perigo real mas odiar aqueles que não estão de acordo com aquilo em que eles querem crer como sendo a verdade (que é exclusivamente deles)? O que elas têm dentro de si que preferem negar a qualquer preço? Monitorando redes sociais e grupos de wathsapp fico espantado com o que podemos constatar a esse respeito.
Se faz necessária uma reflexão urgente sobre esse comportamento negacionista e também sobre a necessidade de nos solidarizarmos com a dor do outro, de chorar com os que choram. Como podemos estar indiferentes a tanta dor e sofrimento? Como relativizar a morte, os sonhos interrompidos?
Sabemos do impacto econômico na vida da maioria das pessoas, recessão, desemprego, inadimplência, fome e tudo o mais que essa crise pode gerar. Mas isso não pode justificar a militância pelo fim da quarentena, do distanciamento social em nome da economia! Não teria sido Jesus o autor dessa frase: “Não é a vida mais que o alimento e o corpo mais do que o vestuário?” Mt 6,25
Portanto podemos e devemos chorar com os que choram e se de alguma forma pudermos contribuir solidariamente com aqueles necessitam, sairemos bem mais humanos dessa pandemia, mas isso requer um juízo correto sobre a realidade e um esforço pelo bem comum.
[1] Freud, Sigmund - O Ego e o ID e outros trabalhos – Rio de Janeiro: IMAGO 1976
[2] Laplanche, Jean – Vocabulário da Psicanálise, / Laplanche e Pontalis – São Paulo: Martins Fontes 2001
Por Eduardo Silva é Teólogo, Psicanalista e Pós-Graduado em Teoria Psicanalítica. Atende na Clínica de Psicanálise em São Paulo. Promove seminários sobre saúde emocional, relações afetivas, sobre crianças e adolescentes no mundo contemporâneo e curso para formação e treinamento de conselheiros. É um dos idealizadores do Grupo de Estudos sobre “Religião, Laço Social e Psicanálise”, que reúne pesquisadores da USP, PUC e Universidade Metodista entre outras.
* O conteúdo do texto acima é de colaboração voluntária, seu teor é de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.
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