terça-feira, 28 de abril de 2020

Proteção digital: novos desafios para organizações religiosas

Proteção digital: novos desafios para organizações religiosas

Novas tecnologias virtuais e plataformas digitais são mecanismos cada vez mais utilizados pelas organizações religiosas. Porém as organizações estão preparadas para lidar com os desafios e as consequências jurídicas que a utilização desses mecanismos podem ocasionar? Sabem proteger dados sensíveis da personalidade de seus membros ou relativos à própria organização? O presente artigo busca trazer um breve resumo sobre Direitos da Personalidade, CiberSegurança e Dados Digitais para auxiliar as organizações religiosas e seus líderes a se protegerem dos desafios modernos que batem em suas portas. 

Recentemente, a infecção causada pelo COVID-19 e as ações governamentais de isolamento social, quarentena e do reconhecimento das atividades religiosas como essenciais, observadas as orientações do ministério da saúde[1], fizeram com que as organizações religiosas evitassem aglomerações e realizassem seus rituais e liturgias em plataformas digitais. Mesmo que sejam por um período determinado, essa adequação tem mudado a realidade dessas organizações, pois o processo de migração do presencial para o virtual somado à praticidade que esses mecanismos digitais oferecem, torna possível que muitas ações permaneçam virtuais. 

Diante desse cenário, é importante que os líderes religiosos estejam familiarizados com alguns conceitos jurídicos para observarem não apenas a legislação, mas tenham bom senso no uso de mecanismo virtuais, haja vista que uma vez publicadas na internet, o controle da informação é praticamente perdido. Veremos abaixo sobre os direitos de personalidade, cibersegurança e um pouco sobre a lei geral de proteção de dados.

DIREITOS DE PERSONALIDADE

Direitos de personalidade referem-se a um direito do indivíduo que não pode ser renunciado e que faz parte de quem se É. Esses direitos buscam defender a dignidade do corpo, nome, imagem, aparência, intimidade ou outros elementos que fazem parte da identidade pessoal. Pode ser encontrado no art. 5º, X da constituição federal e qualquer violação a esse direito permite indenização material e moral. 

Aplicado ao contexto das organizações religiosas, é preciso atentar para que os direitos de personalidade não sejam afrontados quando forem promovidos aconselhamentos pessoais ou em grupo que apareça a imagem de pessoas pela webcam, ou “lives” em redes sociais que contenham músicas ou participações de crianças. A liberdade religiosa de pregar conforme suas doutrinas mesmo que seja sobre temas que podem entrar em conflito com éticas políticas e/ou religiosas alheias, está garantida, porém mesmo assim é necessário observar alguns procedimentos:

(i) evitar nomear pessoas ou dar exemplos não autorizados durante conversas online; 

(ii) informar quem é o autor e compositor das músicas utilizadas; 

(iii) assinar termo de adesão ao voluntariado que contenha cláusula de cessão de direitos do uso de imagem para todos que estiverem envolvidos nas liturgias e na transmissão e no caso de menores de 18 anos, com autorização dos pais; e 

(iv) atentar para o período eleitoral e afastar qualquer interferência ou abuso de poder na influência por votos, conforme o art. 237 do Código Eleitoral;

Todas essas medidas buscam proteger as pessoas de qualquer possível ofensa causada pelas atividades religiosas realizadas na internet. Veremos agora sobre a Cibersegurança, para evitar acessos não autorizados.

CIBERSEGURANÇA

A cibersegurança fala do cuidado que a organização religiosa precisará tomar para proteger seus dados internos, em face de perigos que surgem especialmente das relações virtuais, e que são cometidos geralmente por funcionários ou terceiros mal intencionados. Ao acessar o banco de dados da organização que contenha os procedimentos internos, contas bancárias, contratos comerciais, de trabalho, dos dados pessoais de saúde e até morais dos membros, estes podem obter alguma vantagem ou até mesmo cometer crimes, pois são dados pessoais sensíveis[2] com grande potencial de risco para as pessoas físicas e jurídicas. Algumas recomendações são

(i) estabelecer níveis de acesso à rede interna da organização e quem poderá acessá-los;

(ii) criar e gerenciar banco de dados; 

(iii) guardar e-mails, conversas por aplicativo de mensagens instantâneas e chamadas de voz como Whatsapp®, Telegram® e outros que comprovem qualquer negociação, pagamentos ou doações;

(iv) ao dispor de site onde seja possível realizar doações e compras onde ficam armazenados dados do cartão de crédito/débito dos membros. 

(v) não inserir senhas de e-mails ou de acesso ao sistema interno da organização em computadores de desconhecidos; 

(vi) trocar as senhas regularmente; 

(vii) Nos casos de transações econômicas no exterior, especialmente por agências missionárias que assistem ministros e suas famílias em países contrários à liberdade religiosa, é fundamental que o cuidado seja redobrado.

Nos critérios supra mencionados, amplia-se a proteção da privacidade das organizações religiosas como a de seus membros, em sua liberdade de expressão, associativa e religiosa. Os direitos de personalidade podem ser afetados se a organização religiosa não gerir bem os dados digitais e não cumprir recomendações de cibersegurança. O que ajuda muito a compreender a dinâmica dessas relações é o que está disposto na lei nº 13.709/2018, também chamada de Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).

LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS

A ANAJURE já manifestou o entendimento que a LGPD não é uma lei isolada do ordenamento jurídico e que em “qualquer medida, bem como qualquer legislação sobre tratamento de dados, devem atender aos critérios da legalidade, proporcionalidade, transparência, consentimento, delimitação da finalidade, não-identificação e temporariedade”[3], pois existe o risco de que na busca pelo interesse público, o império da lei ultrapasse as fronteiras de outras garantias fundamentais. No entanto, quando a organização religiosa controlar e operar informações relativas à pessoa natural ou jurídica, público ou privada, a organização se coloca sob a égide da LGPD que no seu art. 4º não permite escusar-se da tutela da lei e no caso de descumprimento dessas normas, com algum dano verificado, a responsabilidade civil irá invariavelmente recair nas ações e omissões da organização. É urgente que sejam desenvolvidas novas formas de tratamento[4] de dados digitais e cada organização poderá formular regras internas e de boas práticas de governança adaptadas a sua realidade, desde que observadas os princípios gerais da lei. 

Tais medidas poderão ser realizadas pela própria organização na qualidade de controlador ou por empresas especializadas em gestão de dados digitais na qualidade de operador, mantendo seus cadastros sempre atualizados e procurando medidas de compliance (prestação de contas) frente à Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) [5]. Verifica-se que ao garantir a transparência dos processos, todos aqueles que estejam envolvidos no processo do tratamento dos dados estarão amparados em suas funções, além de que esses procedimentos ajudarão a encontrar possíveis brechas no fluxo de trabalho e quem porventura possa ter cometido uma ação fora das regulamentações.

CONCLUSÃO

A proteção de dados pessoais como a promoção da cibersegurança dos processos internos e a obediência à LGPD não reduz a liberdade religiosa, mas permite a demonstrar que a organização está atenta aos mecanismos anticorrupção e acessível a novas e modernas tecnologias. Ademais, protege a intimidade de seus membros, o que é de bom alvitre até mesmo para convencer prosélitos da verdade de seus ensinos e manter um bom testemunho na esfera pública.

[1] No Decreto nº 10.282/2020 que alterou a lei nº 13.979/20, considera como atividades essenciais as que tratam de questões religiosas, por serem “indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população” http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10282.htm

[2] Lei nº 13.709/2018, art. 5º, I - dado pessoal: informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável; II - dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural;

[3] https://anajure.org.br/nota-sobre-a-utilizacao-de-dados-de-geolocalizacao-como-medida-de-combate-a-pandemia-do-coronavirus/

[4] Lei nº 13.709/2018, art. 5º, X - tratamento: toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração;

[4] https://www.serpro.gov.br/lgpd/governo/quem-vai-regular-e-fiscalizar-lgpd


Por Gabriel Dayan, Coordenador do departamento de assuntos denominacionais da ANAJURE.

A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JURISTAS EVANGÉLICOS - ANAJURE é uma entidade brasileira composta por operadores do direito, integrantes do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da OAB, das Procuradorias Federais e Estaduais, assim como Professores e estudantes de todo o país, estando presente em 25 Estados da República Federativa Brasileira, e tem como lema a “Defesa das Liberdades Civis Fundamentais”, em especial, a Liberdade Religiosa, de Expressão e a Dignidade da Pessoa Humana. A ANAJURE também é filiada a instituições internacionais que trabalham em defesa das liberdades civis fundamentais em todo o mundo, como a Federação Interamericana de Juristas Cristãos (FIAJC) e a Religious Liberty Partnership (RLP).

Leia o artigo anterior: Liberdade religiosa, discriminação e a Organização das Nações Unidas


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