sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Liberdade religiosa na aviação missionária: os céus da Amazônia precisam de atenção!

Liberdade religiosa na aviação missionária: os céus da Amazônia precisam de atenção!

O mito é antigo: o jovem Ícaro, inebriado pelo desejo da liberdade, usou as asas projetas pelo seu próprio pai, mas voou tão alto que elas derreteram sob o calor do sol e ele despencou em mar revolto. Não é de hoje que a adrenalina de rasgar os céus estimula a criatividade humana, para construir formas de imitar os pássaros. A evolução tecnológica acentuada e a globalização, que encurtam as distâncias e o tempo, têm amadurecido este desejo ao popularizar os assuntos aeronáuticos: são clubes, associações, cursos específicos, entre amadores e profissionais, que se multiplicam exponencialmente no Brasil.

Embora estejamos falando de assuntos que custam na ordem de centenas de milhares de dólares, segundo a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) nunca tivemos tantas aeronaves registradas no país [1] – em fevereiro de 2019, eram 22.219 unidades. Neste universo crescente, está a Aviação Missionária, que chegou no Brasil há mais de seis décadas e, atualmente, envolve dezenas de organizações e centenas de pessoas, tendo por objetivo viabilizar o transporte aeroviário para atividades missionárias e humanitárias.

É que a liberdade de religião e crença está ramificada nas várias relações que estabelecemos na vida cotidiana, na fixação e limitação dos horários de trabalho, no uso de vestimentas características de determinadas religiões, na liberdade de manifestação e expressão, no direito à não discriminação religiosa. No contexto da aviação, estes direitos também precisam ser respeitados e isto não é novo no mundo [2] – aliás, nem é exclusivo da religião cristã [3].

A Aviação Missionária no Brasil atua predominantemente no contexto amazônico e não poderia ser diferente, pois as distâncias na região Norte têm outras proporções. Vejamos alguns exemplos:

  • A área total da região Norte é maior do que as duas outras maiores, Nordeste e Centro-Oeste, juntas;
  • Os estados da região Norte têm as maiores extensões territoriais;
  • As características da densa floresta Amazônica tornam os acessos dificultados;
  • Há várias comunidades distantes, onde a passagem de trem ou carro não é possível; e
  • O trajeto de avião torna em horas uma viagem que duraria dias em um barco.

Assim, para congregar esforços e dinamizar o exercício das atividades, foi até criada a ALEAM – Aliança Evangélica de Aviação Missionária, parceira institucional da ANAJURE, autodenominada “uma rede livre de organizações e pessoas, vinculadas por sua visão de alcance missionário das comunidades tradicionais da Amazônia Legal através da aviação" [4].

Estas organizações são responsáveis por socorro médico, social, educacional, emocional e espiritual a diversas populações e comunidades humildes e distantes, nos rincões da Amazônia. Ocorre que elas têm natureza confessional e não têm fins lucrativos, mas, no exercício da sua liberdade religiosa, passam por dificuldades para atuarem. Se os órgãos competentes não derem a devida atenção, estas atividades ficarão, cada vez mais, comprometidas e quem mais sofrerá com a falta de apoio são os mais carentes.

Vejam algumas pautas que merecem atenção:

  • A fixação de critérios objetivos para a aviação experimental

Com frequência, aeronaves de 5 a 10 lugares chegam ao patamar de milhões de dólares, mas os modelos experimentais são, na média, 5 vezes mais baratos que os seus equivalentes. Embora possuam alto valor tecnológico agregado, a produção e comercialização de experimentais foi minada ao longo das décadas e a ANAC, especificamente, proíbe seus voos sobre áreas densamente povoadas. Assim, na prática, impõe multas altas, sem fixar

parâmetros objetivos, nem critérios técnicos e faz uso de conceitos vagos – como a própria ideia de “densamente povoada”. Esta insegurança jurídica é um risco enorme, pois a Aviação Missionária precisa de bases de atuação em cidades e a falta de normas claras ou, porventura, a fixação de normas desarrazoadamente restritivas, prejudicam (e podem inviabilizar por completo) as atividades.

  • A necessidade de urgente homologação de pistas na Amazônia

A homologação de pistas é, por si só, um procedimento demorado e cuidadoso, mas a (boa) burocracia não pode ser empecilho para o usufruto de direitos. Acontece que o acesso a diversas comunidades mais distantes da Amazônia só se dá por meio de pistas irregulares; essa é a única forma destas pessoas receberem, por exemplo, assistência à saúde – não sem motivo a Funai e a Sesai tem buscado acelerar tais processos [5]. Neste cenário, para prestar tal assistência, o piloto e a tripulação missionária ficam expostos a riscos maiores, exigindo daquele uma habilidade ainda maior para pousar e decolar em locais incertos. Exatamente por isso as empresas de seguro de voo são reticentes em cobrir tais operações, deixando a todos desguarnecidos. Há uma dupla insegurança.

  • A regulamentação da Aviação Humanitária no contexto amazônico

As dificuldades de acesso por entre a densa floresta Amazônia, a falta de estrutura para o uso de trem ou carro em vários lugares e a lentidão de transporte por meio de barco, tudo isso torna o avião um instrumento locomoção de primeira necessidade para chegar nos locais mais remotos do Norte do Brasil. Entretanto, não existem projetos, subsídios, incentivos, planos, isenções e nem mesmo o Código Brasileiro Aeronáutico prevê algo sobre a Aviação Humanitária, que já é uma prática internacional amplamente disseminada, inclusive pela ONU, para socorro em casos de emergência. Urge que, assim como se reconhece o serviço social prestado pelas entidades filantrópicas [6], motivo pelo qual a ordem social dispõe de alguns benefícios, o uso aeronáutico para socorro dos necessitados deva ter também uma atenção especial.

De início, parece que áreas tão díspares como aviação e religião não têm qualquer ponto de contato, mas basta uma lupa mais acurada sobre a realidade, para enxergarmos os desafios n’alguns temas. Todos estes assuntos já têm sido debatidos na esfera pública [7] e serão levados pela ANAJURE ao conhecimento dos órgãos competentes, para discussão mais aprofundada, como a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), o Departamento de Controle do Espaço Aéreo (DECEA) e a Força Aérea Brasileira (FAB).

Ora, se a Constituição Federal brasileira tem como objetivo “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, III, da CF), deve ter um olhar de beneplácito às necessidades daqueles que, por missão religiosa e voluntária, buscam formas de melhor servir ao outro com desprendimento. Isto só é possível pois o Estado brasileiro é colaborativo (art. 19, I, da CF) com as confissões religiosas que preservam e estimulam a “dignidade da pessoa humana” (art. 1º, III, da CF), fundamento desta República.

Apesar das dificuldades, a Aviação Missionária segue avançando com o zelo e a dedicação de vários doadores de tempo, dinheiro e talentos. É que diferentemente de Ícaro, personagem da mitologia Grega, estes missionários aviadores têm uma paixão maior do que simplesmente rasgar os céus nas asas da liberdade: suportar o desvalido e levar as boas novas da Liberdade aos humildes de coração. Isto só pode ser feito num país onde é assegurado o Direito à Liberdade Religiosa (art. 5º, VI, da CF). Portanto, sigamos firmes, para fazer valer esse Direito Humano e Fundamental tão precioso.

[1] Acompanhe a live que a ANAJURE participou sobre o tema com a Comissão de Direito Aeronáutico da OAB/PB. Disponível em < https://anajure.org.br/anajure-discute-direito-aereo-e-liberdade-religiosa-com-comissao-de-direito-aeronautico-da-oab-pb/>.

[2] http://www.funai.gov.br/index.php/comunicacao/noticias/5725-funai-e-sesai-comecam-processo-de-homologacao-de-pistas-de-pouso-em-terras-indigenas

[3] Sobre este assunto, veja a pesquisa do Fórum Nacional das Instituições Filantrópicas, pois “Segundo números reunidos na pesquisa, a cada R$1,00 investido pelo Estado no setor com as imunidades fiscais, a contrapartida real é de R$7,39 em benefícios entregues à população – ou seja, uma entrega mais de sete vezes superior ao que é recebido”. Disponível em < https://fonif.org.br/wp-content/uploads/2020/06/PESQUISA_FONIF_2019_compressed.pdf>.

[4] Para mais informações, acesse: http://aleam.org.br/

[5] https://www.anac.gov.br/assuntos/dados-e-estatisticas/aeronaves

[6] A Judah 1 será a primeira companhia aérea cristã do mundo e tem por objetivo transportar passageiros em viagens missionária. Veja mais em <https://www.aeroflap.com.br/primeira-companhia-aerea-crista-do-mundo-ainda-aguarda-aprovacao-da-faa/>.

[7] https://www.aeroin.net/por-dentro-do-mundo-das-companhias-aereas-religiosas/

Por Edmilson Ewerton Ramos de Almeida, Advogado. Especialista em "Estado Constitucional e Liberdade Religiosa" pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, com estudos na Universidade de Oxford (ING) e na Universidade de Coimbra (POR). Consultor Jurídico do Programa de Apoio a Agências Missionárias (PAAM) da "Associação Nacional de Juristas Evangélicos" (ANAJURE).

A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JURISTAS EVANGÉLICOS - ANAJURE é uma entidade brasileira composta por operadores do direito, integrantes do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da OAB, das Procuradorias Federais e Estaduais, assim como Professores e estudantes de todo o país, estando presente em 25 Estados da República Federativa Brasileira, e tem como lema a “Defesa das Liberdades Civis Fundamentais”, em especial, a Liberdade Religiosa, de Expressão e a Dignidade da Pessoa Humana. A ANAJURE também é filiada a instituições internacionais que trabalham em defesa das liberdades civis fundamentais em todo o mundo, como a Federação Interamericana de Juristas Cristãos (FIAJC) e a Religious Liberty Partnership (RLP).

* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.

Leia o artigo anterior: Um direito sob ameaça: Panorama global da liberdade religiosa


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