O mundo ideal é o mundo no qual sonhamos viver. Nele idealizamos a ausência da dor, da doença, da frustração, da decepção, da limitação e das faltas. Idealizamos também a fartura das coisas, do amor, da compreensão, da paz e da harmonia e do “felizes para sempre” dos contos de fadas.
No entanto, vivemos num mundo real, muitas vezes escasso de solidariedade e felicidade, repleto de violências, injustiças, ganâncias e preconceitos.
No mundo real percebemos certa dose de frustração na percepção de que os desejos nem sempre são atendidos e os sonhos nem sempre realizados.
No mundo real nem sempre o que desencanta nossa vida provém de fora, como os feitiços da bruxa má dos contos de fadas. Mas, muitas vezes o que nos atrapalha são nossas próprias escolhas, como também nossas limitações e incompetências, seja na falta de habilidade para o desempenho de algo ou na restrita arte de dialogar e interagir com nosso semelhante.
No mundo real a família não será perfeita. O bebê acordará no meio da noite. A criança fará birra. O adolescente questionará a postura paterna e materna. Os filhos nem sempre serão gratos. Os pais nem sempre terão a paciência necessária e, por vezes, estarão confusos na arte de educar. Haverá conflitos mesmo nas melhores famílias.
No mundo real os casamentos, mesmo pautados no amor e na espiritualidade, também não serão perfeitos. Os cônjuges continuarão humanos e imperfeitos, e haverá lacunas mesmo nos melhores casamentos.
No mundo real a comida às vezes terá muito ou pouco sal. Ao invés do farto Buffet dos restaurantes encontrar-se-á apenas um ou dois sabores à mesa da família. E para saciar a sede, a bebida almejada poderá estar sem gelo.
No mundo real os joelhos em algum momento doerão. Da mesma forma a cabeça, a coluna e o pescoço. Os carboidratos, os açúcares e as gorduras em excesso continuarão prejudicando a saúde. A poluição, os agrotóxicos, os vírus, as bactérias, o estresse e a genética continuarão solapando a saúde.
No mundo real a imagem refletida no espelho pode causar estranhamento. O cabelo despenteado e grisalhando, o corpo desalinhando e enfraquecendo com a idade em avanço, e as rugas, vencendo os hidratantes, insistindo no redesenho do rosto.
No mundo real o envelhecimento será inevitável, independentemente de quantas plásticas ou botox o dinheiro puder bancar.
No mundo real podemos nos assustar quando com coragem nos postamos diante do espelho da alma e percebemos ali um ser arrogante, egoísta, muitas vezes desumano consigo e os demais. Ou quando vemos ali um ser auto comiserado, prisioneiro do próprio umbigo, incapaz de exercer compaixão com quem quer que seja.
No mundo real a mágoa brotará em meio às decepções e a raiva, como um vulcão em erupção, tirará o sossego muitas e muitas vezes.
No mundo real, por maior que seja a fama, o sucesso e a riqueza, será impossível deixar de ser humano para se tornar Deus perfeito, infinito, ilimitado e completo. Sim, no mundo real somos humanos e por isso imperfeitos, limitados e parciais.
No mundo real perceber-se-á que sempre haverá alguém mais bonito, mais rico, mais inteligente, mais sábio, mais competente, mais famoso, mais saudável e mais feliz. O contrário também pode ser verdadeiro.
No mundo real o dinheiro poderá não ser suficiente, e se for não realizará todos os sonhos e desejos. Nem mesmo consegue comprar relacionamentos significativos, que é do que mais precisamos.
No mundo real o consumismo e a decadência de valores consistentes apelará pela distorção das prioridades. Às vezes a sensação de ser desamado, incompreendido, usado e mesmo injustiçado, será companhia indesejável.
No mundo real as demandas excessivas tentarão roubar o sentido da vida. O cansaço nocauteará, às vezes, o mais bravo trabalhador. Poderá ser grande a decepção ao descobrir que é um mito essa ideia de que ao encontrar um trabalho de que goste nunca mais precisará trabalhar, pois será diversão. Logo descobrirá que trabalho sempre será trabalho e diversão é bem outra coisa.
No mundo real vez por outra brota a sensação de se estar preso. Sim, estamos confinados no tempo e espaço. Viajar para o passado e futuro é mera ficção. Somente é possível viver o presente e estar em um lugar por vez.
No mundo real as coisas boas também cansam, até mesmo as melhores férias e as melhores companhias.
No mundo real os jogos, filmes, séries, redes sociais em demasia conduzirão a um “mundo paralelo” e poderão sequestrar a conexão com a vida.
No mundo real o papel higiênico não nasce na parede. Para tê-lo disponível é preciso trabalhar para repor. Da mesma forma para obter a água, a eletricidade e o wifi.
No mundo real os pais não duram para sempre, é preciso crescer e aprender a se bancar financeiramente e afetivamente.
No mundo real terá dias em que a roupa estará por lavar/passar, a casa por limpar e a diarista? ... ela não virá, pois adoeceu... pois então, no mundo real a diarista é humana também.
No mundo real a sujeira, a poeira e o lixo voltarão a aparecer mesmo na casa mais limpa. Da mesma forma haverá louça para lavar em todas as deliciosas refeições.
No mundo real o sol brilhará em dias em que urge a chuva. E a chuva cairá em dias de passeio. O inverno será frio demais e no verão a brisa será de menos. No calor desejar-se-á o frio e no frio? Ah! que saudade do calor!
No mundo real haverá formigas no piquenique e no restaurante terá excesso de gente.
No mundo real todos podem ser alvos de catástrofes climáticas, ventos, enchentes, enxurradas, doenças, acidentes, assaltos, sequestros e turbulências, não importando o quanto alguém se julgue santo e merecedor da proteção divina.
No mundo real não há blindagem para a saúde, as finanças e nem mesmo para o casamento.
Por mais que tracemos metas motivacionais e exercitemos a nossa fé, na vivência da vida nos depararemos com inúmeras situações em que o ideal não estará no real, mesmo que queiramos e creiamos no ideal com toda nossa alma.
EXPECTAR PELO IDEAL NO REAL EXAURE A ALEGRIA E A PERSPECTIVA DA BELEZA DAS COISAS SIMPLES E IMPORTANTES.
É justamente a alegria que nutre de força a nossa vida. Conforme o texto bíblico: “... a alegria do Senhor é a nossa força” (Neemias 8.10). Para experimentar a alegria é preciso abandonar as expectativas pautadas nas idealizações impossíveis de serem alcançadas. É perceber que apesar das formigas no piquenique, por exemplo, o que importa é que estamos com as pessoas que amamos e que podemos contemplar a exuberância da natureza à nossa volta que nos fala do Criador.
No mundo real o sobrenatural não se faz presente pelo ideal de uma blindagem mítica obtida por posturas santas e irrepreensíveis, nem mesmo por mandingas, orações ou mantras em rituais de alguma religião. O sobrenatural se faz presente pela maravilhosa graça que nos faz enxergar a vida para além das circunstâncias. Pela graça podemos crer, perceber e reverenciar, pois os milagres se mostram em todo tempo e os seus inúmeros micro sinais estão presentes em tudo o que está à nossa volta e nos acontece.
Mesmo diante da inexistência de situações ideais podemos mudar a perspectiva e deixar a alegria entrar. Assim percebemos que sempre temos algo a agradecer e por celebrar.
Verena Kast (2016) refere que os grandes sentimentos que buscamos nem sempre são acessíveis, mesmo assim é possível abrir-se para a perspectiva da alegria deixando de correr atrás do que nos falta.
“As pessoas anseiam o avivamento, elas querem se sentir animadas e inspiradas, sentir coragem, sentir-se vinculadas a outras pessoas, sentir segurança na vida. Isso acontece quando permitimos e vivenciamos a alegria. Os grandes sentimentos que buscamos na verdade nem sempre são acessíveis e podem ser também desgastantes. E não precisamos deles sempre. Sentimentos pequenos também servem. Quando nos apercebemos conscientemente da alegria, ela nos anima e pode ser reativada sempre de novo. Nós vivenciamos a alegria quando algo sai melhor, mais enriquecedor do que esperávamos. Quando nos alegramos, nós nos aceitamos e aceitamos também os outros, o mundo, a vida. Deixamos de correr atrás do que nos falta. Não há escassez, mas abundância, e disso resulta a solidariedade com outras pessoas. Disso resulta também a gratidão. Quando nos alegramos, é fácil estar em ressonância com nosso mundo interior, mas também com o mundo ao nosso redor e com os próximos. Na alegria somos mais amorosos, mais carinhosos, mais esperançosos, mais corajosos”. (KAST, 2016, p.145)
Nessa perspectiva podemos entender que para vivermos bem não é necessário perseguir o ideal, que nunca encontramos no real. Mas, é perceber que podemos nos alegrar mesmo na escassez, que sempre se mostra abundante no que realmente importa.
Se depositarmos nossa felicidade apenas em momentos especiais, ou seja, nas férias sonhadas, na viagem almejada, na festa esperada, no enriquecimento, na compra da casa nova e do carro novo, na conquista de um título etc., teremos poucas chances de sermos felizes, sendo esses momentos raros e esporádicos. No real da vida temos inúmeras oportunidades de experimentar alegria em todos os dias. Ao ouvir uma música, o canto de um pássaro, como também na experiência da contemplação de algo belo, na devoção ao Criador, na meditação, na oração, na percepção do movimento do nosso corpo e do pulsar do coração, no sentimento de se estar vivo, na capacidade de andar, comer, beber, falar, cantar, amar, abraçar, dormir e acordar, e mesmo no potencial de superação, plantado em nós pelo Criador para enfrentar as vicissitudes inesperadas da vida.
Quando damos tempo para a alma se alegrar podemos experimentar a conexão do mundo interior com o exterior, da eternidade com a existência, do ideal com o real, da abundância com a falta. Segundo Verena Kast é evidente que essa experiência não pode ser produzida por nós, mas podemos nos sensibilizar para ela, o que fará significativa diferença em nosso mundo real.
Portanto, mesmo que o ideal não esteja no real, é possível abrir-se para experimentar incircunstancialmente uma vida cheia de graça e com sentido, que se renova continuamente numa interação saudável com Deus, com nossa essência, com nossos semelhantes e com o meio ambiente.
Por Clarice Ebert, Psicóloga (CRP0814038), Terapeuta Familiar, Mestre em Teologia, Professora, Palestrante, Escritora. Sócia do Instituto Phileo de Psicologia, onde atua como profissional da psicologia em atendimentos presenciais e online (individual, de casal e de família). Coordenadora e palestrante, em parceria com seu marido, do Ministério Vida Melhor (um ministério de cursos e palestras). Membro e docente de EIRENE do Brasil.
* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.
REFERÊNCIA
Kast, V. A alma precisa de tempo. Petrópolis/RJ: Vozes, 2016.
O IDEAL nunca está no REAL! publicado primeiro em https://guiame.com.br
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